Palestra sobre o filme: "Julieta"

A cor vermelha, forte, vermelho sangue, aparece logo no início. A roupa de Julieta enuncia de imediato algo que o filme nos colocará de frente: o pulsar da vida, o sangue, as paixões e seus trilhamentos.

Um sentimento intenso que responde por algo que parece muito urgente e que a move. No entanto, esse sentimento parece contrastar com seu olhar triste. E, esse dado nos chama a atenção como uma dissociação.

O que iremos trabalhar aqui é justo algo que conceitualmente nos é muito caro tanto no Zen quanto na psicanálise: o equilíbrio ou regulagem das forças psíquicas dinâmicas.

Somos constituídos por energias psíquicas amorosas e destrutivas, eros e tanatos, energia de vida e energia de morte, ou ainda, conexões e desconexões, movimentos de conjunção e disjunção.

Cientes de que o equilíbrio psíquico precisa se fazer num campo de impermanência e interexistência, é necessário iniciarmos uma jornada de autoconhecimento para que possamos ser veículo de emergência de forças aparentemente antagônicas sem medos, entraves e obstáculos que nos impeçam de contactar com o fluxo potente da vida que porta necessariamente a morte.

Dito isto, podemos já observar que Julieta e Xoan são representantes de uma subjetividade que busca se encontrar nas profundezas. Para tanto é preciso densidade subjetiva.

Julieta mergulhava nas almas dos personagens da literatura, buscando a si mesma e o contato com o outro.

A paixão, a tragédia grega, a encantava.

Xoan era encantado com o mar. Nas profundezas buscava pescar, alcançar, a sua vida.

O encontro se dá nessa interseção dos olhares. Apaixonam-se, são apaixonados, tomados por esse arrebatamento de almas.

Quanto ou quantum de energia, podemos pensar que tem de ilusão e realidade nesse encontro?

Do que estamos falando? Estamos falando sobre a possibilidade de viver a vida a partir de um desconhecimento de si, de ser governado por forças inconscientes poderosas e prevalentemente destrutivas ou de outra possibilidade de viver sua vida a partir de um contato maior consigo mesmo.

Esse "si mesmo", diz respeito ao que chamamos de "verdadeiro self". Quando o sujeito não tem campo subjetivo, tempo e espaço, para vivenciar aquilo que se apresenta, ele é atropelado por situações que provocam, produzem e o convocam a agir/pensar e sentir de um modo que o distancia de uma possibilidade de se contactar e experienciar o que é seu naquele momento e o que está no seu entorno.

No caso da relação de Julieta e Xoan, ambos se encontraram num momento da vida que estavam no auge de uma busca por contato num nível bastante profundo. No entanto, a suavidade, a serenidade e a firmeza - elementos tão necessários para viabilizar essa busca - não puderam existir.

Tudo se deu num atropelo.

Encontram-se num trem em alta velocidade, numa noite de ventania, onde a morte e o desejo estavam à espreita (o veado e o suicida). No fio da navalha.

Xoan chama por Julieta quando sua esposa está exatamente morrendo. Morte numa cena, explosão de vida em outra imediatamente. Tudo no mesmo dia!

Esposa, Ava e Julieta, todas no mesmo dia e ele "tendo" que lidar com tudo isso para não ter que lidar com nada disso.

Insustentável? O que? Quando partimos de uma posição subjetiva de que não iremos suportar algo - embora não tenhamos consciência disso - antecipamos movimentos em direções necessariamente aleatórias e, portanto, inadequadas, inapropriadas. Justo porque por só poderiam ser apropriadas se pudéssemos ter a reserva, o recuo, o lugar psíquico não antecipatório de aguardar a situação se apresentar inteiramente com os elementos verdadeiros. Só assim teríamos a possibilidade de criar as ferramentas necessárias para vivê-la.

Nesse caso - e em muitos outros - parece que tudo está indo bem. O casal, o filho, a vida doméstica aparentemente equilibrada e funcionando.

Pode-se perguntar: "Mas, não é assim mesmo que as coisas se dão? As pessoas vão vivendo como conseguem e vão se ajeitando no meio do caminho. Não seria idealizar demais pensar que as pessoas precisariam estar com tudo delas em dia para então se relacionarem com as outras?"

Temos essa visão em geral, porque temos por base o mais comum como sendo um padrão médio de atendimento a necessidades e desejos e alguma suficiência bastaria. O sujeito se ilude com um tanto de compensação como critério de bem estar e felicidade.

Visto por esse ângulo, sim, a vida teria essa regularidade. E algumas coisas que saem dos trilhos ficam na conta da fatalidade, ou de novo, da normatividade do "não tinha que ser", "foi bom enquanto durou".

Podemos nunca chegar perto de nós mesmos, assim como, nunca nos aproximarmos do que, de fato, aconteceu com uma relação, ou, com as relações a nossa volta. É legitimo também.

Mas, se nos interessa saber sobre a gente, sobre o outro, sobre o que nos cerca, sobre do que são feitas as humanidades, teremos que abrir mão das falsas questões, das dualidades rasas e das certezas materiais. Entramos num terreno de buscar conhecer aquele sujeito a partir do que ele é, do que ele está sendo, do que o move, do que ele se propõe, do que teme e do espaço que tem em si para desejar.

Um desencontro se dá enquanto Julieta se ausenta momentaneamente da sua relação com Xoan numa tentativa temporal de regularizar uma ausência com os pais.

A ilusão é a de que poderá - depois de muito não poder - atender aos pais e ser atendida por eles afetivamente. Vive um pequeno encontro, provisório, mas muito profundo, com a mãe. Ao mesmo tempo, que se encontra com uma ausência do pai, uma desconexão grande.

Volta para seu lar, tudo aparentemente pronto para ser retomado, pode também retomar sua profissão. Veja, na verdade, alguns pontos da vida, param em função de outros, e aí temos um problema.

Porque o tempo da subjetividade, assim como da própria vida, não tem essa regularidade. O sujeito tenta se domesticar, e, "fazer esperar", aspectos seus que não poderiam ficar desassistidos, mas ele tem muitas justificativas para agir assim e continua a fazer dessa forma. Lá na frente ele acertará o passo. Desta forma, segue.

E quando Julieta acha que está pronta para conciliar alguns aspectos da sua vida; Marian pode se aposentar, e, não a importunará mais com sua enunciação constante de infelicidade, invasão, autoritarismo e frieza; Antía já pode sair para passear sozinha e sua relação com Xoan está estável, ela é surpreendida com algo que abala tudo que construiu até ali. Sua base era frágil?

É triste testemunhar a cena a qual parece que tudo vai por água a baixo. A cena de Marian com Julieta onde a mesma conta para ela num despejo de raiva e confirmação de sua descrença no humano que Xoan esteve com Ava todas as noites em que ela estava fora, traduz o encontro fatídico da raiva das duas: Julieta e Marian.

As duas não puderam mais conter uma energia de afeto represada por anos e a mesma entrou em estado de combustão imediata.

Não foi suficiente para Julieta que Marian fosse embora, o ressentimento, sentimento não expresso durante muitos anos, saiu sob a expressão hostil de uma acusação de furto, quando ela acusa Marian de estar levando o casaco de Xoan.

Marian por sua vez reedita seu ódio e fuzila as fragilidades de todos e seus pactos num só ato numa tentativa humana de se sair relativamente inteira, depois de acusar um golpe no seu narcisismo. Afinal, sua vida foi "dedicada" aquela família.

O ponto cego de Xoan é muito perigoso e fatal. Ele não era agressivo, inoportuno, não cobrava ou tinha expectativas em relação a ninguém. Onde destinava suas dores, carências e mal estar? Alternava objetos e se satisfazia com os mesmos intensamente.

Isso vinha funcionando de algum modo. Mas, quando apareceu a emergência desses campos e seus objetos sem possibilidade de convivência harmoniosa, abriu-se um conflito que o fez se dirigir para um lugar onde não teria que lidar com isso e que lhe pareceu insuportável.

O mesmo mar que o mantinha vivo, o destruiu. Porque não era o mar, era o "mar" dentro dele de emoções não elaboradas, que o fazia "adentrar" em situações (mares), desconhecidos sem a devida cautela. A emoção da aventura embora fosse inebriante não o transformava, não o curava, ou, salvava apenas lhe tirava provisoriamente a condição de sofrimento.

Curar, se salvar, não habitar um sitio prevalente de dor, significa atravessar o terreno da fantasia de ser devorado pela mesma. Ao mesmo tempo, que reconhecer a finitude do prazer.

Quando Julieta aceita a proposta da mãe da "amiga" da Antía para ficar na casa dela por algum tempo, usar as roupas dela, passear e usufruir da cidade e da casa luxuosa, ela abre mão de algo fundamental: viver o que tinha para viver de seu naquele momento com sua filha.

Sabemos que não é fácil, mas é absolutamente importante estarmos com o que somos; com o que temos, com aquilo que reconhecemos como próprio, sempre, e especialmente quando estamos fragilizados.

Um aspecto importante para analisarmos é: é importante um filho ir para uma colônia de férias quando ele diz que não quer ir? Onde está a certeza de que isso é incontestavelmente bom? O que estamos dizendo aqui é apenas: que a criança pode ficar muito bem sem estar sendo estimulada. Ela pode apenas estar no seu ambiente, ter segurança em estar ali, tranquilidade e a simplicidade da experiência.

Chama atenção a maneira como a mãe nesse momento está num papel de executora, de gerente da casa, da filha, e o marido muito "tranquilão".

Outro dado importante é a mãe da Bea. A maneira como ela age: ela se antecipa para buscar a filha no acampamento, tem a convicção de que a amiga da filha deve ir para sua casa, convence Julieta a permitir, convence Julieta a ficar na sua casa, deixa sua (?) casa com uma desconhecida que está visivelmente desorientada, vai para Patagônia, e faz tudo isso como se fosse algo muito natural, generoso e nobre. Do que essa mulher estava fugindo? Dela mesma?

Antía e Bea tinham tudo para se colarem uma na outra e viverem uma bolha existencial.

Ambas estavam sozinhas, em famílias aparentemente cuidadoras. Guardadas as devidas proporções das diferenças entre as duas famílias.

Bea não conseguiu sustentar a própria cola que produziu com Antía.

Antía não suportou o abandono de Bea e o vazio da relação com a mãe que era preenchida por dor não expressa das duas. Não podiam falar sobre o que doía nas duas, tinham que tocar a vida, trabalhando, estudando muito.

Antía se retira no momento que o vazio aparece na sua vida verdadeiramente, sem a amiga para tamponar. Busca o retiro para tentar dar conta dentro de si da solidão que sente. Viver seu conflito de não compreender, não aceitar a perda do pai e o vazio, a falta de sentido que isso causou em suas vidas. Ao mesmo tempo, que não podia, não sabia expressar isso ao lado da sua mãe. Com sua mãe é como se só pudesse ficar bem, por isso não estava bem.

Julieta ouve da coordenadora do retiro, palavras firmes, verdadeiras e muito precisas.

Ela não sabia lidar com a vida nesse ritmo. Isso para ela foi estonteante. Tentou voltar pra casa e viver a vida como era e esperar obcecadamente pela volta de Antía.

Num vazio completo, uma fúria lhe acometeu, e partiu para outra cena.

Uma virada perigosa, aquela que o sujeito se diz: "agora sou outra pessoa, jogo fora tudo que vivi até aqui e vou viver outra coisa".

Ledo engano. Não esquecemos nada, "(in)quecemos" tudo.

E o perigo da energia furiosa é justo ela se voltar contra nós num momento em que não estamos tão vigilantes.

E assim aconteceu com Julieta. Quando, mais uma vez, achou que estava pronta - portanto, com as defesas baixas - para tomar um novo rumo, encontra numa esquina (simbólico, não?) o seu outro (?) destino.

O problema não é a decisão de ficar em Madri, ou voltar, ou preservar o endereço antigo de alguma forma o problema é a crença totalizante numa posição subjetiva ou outra: adesão total aquilo que me desequilibra (ausência e sofrimento) ou fuga daquilo que pode me trazer mal estar.

Lorenzo é um elemento fundamental para o resgate, reconstrução e equilíbrio de Julieta. Ele porta paixão, amor, cuidado, suavidade e firmeza.

Julieta com Lorenzo pode suportar sua própria existência e ser suporte e companheira para Antía na existência dela.

Belo filme, onde as dores se traduzem em possibilidades efetivas de mudança!